TRISTÃO DE ATHAYDE
Revista Palavra-chave, São Paulo, n.1, p.4, 1982.
O clássico triângulo literário, autor, crítico e leitor, exige a existência de uma quarta figura, nem sempre suficientemente reconhecida, em seu valor intrínseco e não simplesmente acidental.
Essa figura, como se sabe, é o bibliotecário. Sua função não é apenas instrumental. É igualmente participante da função criadora da literatura. Se o autor e a obra (dentro do meio) é que representam essa função criadora em sentido estrito, a função da crítica e da biblioteconomia completam a criatividade em sentido lato e integral. Cada peça, nesse jogo sutil da criação de um mundo novo, que o homem acrescenta ao mundo natural e social, é indispensável, a seu modo, para que essa tarefa capital de um desdobramento, com que o homem completa, pela arte, a obra criadora de Deus. O bibliotecário costuma ser peça esquecida ou marginalizada, nessa re-criação, com que as criaturas completam ou deformam a obra do Criador.
O bibliotecário deve, acima de tudo, amar os livros. E ter a consciência de que sua tarefa, longe de ser apenas catalogadora, é uma tarefa para-criadora, que completa a ação do autor, do crítico e do leitor. Livro, disco ou filme, meros instrumentos materiais, não se confundem com a função estimativa e ordenadora do bibliotecário.
Para isso, amar esses instrumentos (sobretudo o livro, que está hoje passando por uma séria crise tecnológica), é condição primordial. Selecioná-los e classificá-los, com bom gosto e inteligência, é função, ao mesmo tempo, técnica e afetiva. Mas essa tarefa exige outra qualificação especial, o respeito. Respeito fundamental pela obra que lhe é submetida, sem qualquer interferência qualificativa, no sentido da qualidade do conteúdo. A observância dessa fidelidade aos textos, qualquer que seja sua qualidade, é capital. Quantas vezes, durante o meu professorado universitário, verifiquei a inexistência de livros, revistas ou folhetos do movimento modernista, por exemplo, por terem as bibliotecas invadido a seara dos críticos e leitores,
recusando registro a obras por eles consideradas sem valor literário. Ora, toda arte criadora, no seu início, vem habitualmente chocar o gosto consagrado, na distinção do que é literatura autêntica do que é falsa literatura. Essa distinção existe e é mesmo capital para a tarefa da crítica e da leitura. Acontece, porém, que a tarefa de fazer essas distinções não pertence aos bibliotecários. Isso não diminui, em nada, a importância de sua intervenção no processo da edição literária. Todo elo da cadeia de criação tem sua importância própria, que só deve ser exercida pelo elo destinado a determinada função. De modo que o dever de admitir com estética a obra que lhe é fornecida, para selecionar e classificar, qualquer que seja seu juízo
próprio, é qualidade que pertence particularmente à importante missão dos bibliotecários. Isso é tão fundamental como o amor pela tarefa, já de si bastante árdua, de preservar, classificar, ordenar, promover o arquivamento da produção intelectual, como instrumento de trabalho para críticos, leitores e os próprios autores.
A profissão de bibliotecário tem sido, ao longo da História, um verdadeiro índice de civilização.
A preservação, em nossa civilização ocidental, como aliás em todas as civilizações, do patrimônio do passado é um mérito e uma gratidão que a História deve a esses silenciosos obreiros do progresso do espírito. Lembremo-nos dos humildes monges medievais que preservaram, no silêncio dos mosteiros, todo o patrimônio literário, científico e filosófico do mundo clássico. Esse é um exemplo capital da dignidade e do mérito intrínsecos da função bibliotecária.
É inútil acentuar, portanto, a importância que representa, para a dignificação da função bibliotecária, a publicação de uma revista, como esta, que pretende ser um ponto de encontro contínuo, entre o trabalho silencioso, honesto e geralmente tão mal apreciado, dessas formigas, que garantem o canto das cigarras intelectuais [*].
Tristão de Athayde
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[*] Alceu Amoroso Lima sobre a revista Palavra-chave, da Associação Paulista de Bibliotecários - APB. [EL]
ATHAYDE, Tristão de. As formigas desconhecidas. ExtraLibris, 2005. Disponível em:
Original: ATHAYDE, Tristão de. As formigas desconhecidas. Palavra-chave, São Paulo, n.1, p.4, 1982.
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